Topo
Notícias

Escritores brasileiros resgatam ancestralidades e lutas em homenagem especial no Festival de Saint-Malo

08/06/2025 13h22

Entre os dias 7 e 9 de junho de 2025, a cidade de Saint-Malo, na França, recebe a 34ª edição do Festival Internacional Étonnants Voyageurs, um dos mais prestigiados encontros literários da Europa. Neste ano, o evento conta com uma expressiva participação brasileira, organizada pela Festa Literária das Periferias (Flup), que levou uma delegação composta por escritores, uma cineasta e um músico, representando a diversidade e a força da produção cultural contemporânea do Brasil.

A delegação brasileira, definida através de uma fina curadoria de Julio Ludemir, diretor da Flup, é formada por nomes de destaque como Djamila Ribeiro, filósofa, escritora e ativista; Itamar Vieira Junior, autor premiado de "Torto Arado"; Daniel Munduruku, referência na literatura indígena; Jeferson Tenório, vencedor do Prêmio Jabuti; Bernardo Carvalho, romancista e jornalista; Eliana Alves Cruz, autora de romances históricos; Geovani Martins, expoente da nova literatura urbana; e Marcelo Quintanilha, quadrinista premiado. A cineasta indígena Graciela Guarani e o pianista Jonathan Ferr completam o grupo.

Marielle Franco e a homenagem do festival

Imponente no cartaz oficial da 34ª edição do Festival Internacional Étonnants Voyageurs, realizado em Saint-Malo, na França, que tem o Brasil como país homenageado em 2025, figura uma ilustração da vereadora Marielle Franco (1979-2018), uma poderosa homenagem à socióloga, ativista e vereadora brasileira assassinada em 2018 no Rio de Janeiro, que se tornou uma espécie de símbolo internacional da luta por justiça social, direitos humanos e igualdade racial.

Presença de destaque no Festival Étonnants Voyageurs 2025, em Saint-Malo, a filósofa, escritora e ativista Djamila Ribeiro celebrou sua estreia no evento marcada por uma homenagem emblemática: a visibilidade de Marielle Franco, presente em toda a comunicação visual do encontro literário. 

Leia também"Feminismo negro não exclui, amplia": Djamila Ribeiro debate ativismos a convite da França

"Primeiro que é uma alegria muito grande estar aqui nesse festival homenageando essa mulher maravilhosa", declarou. "Ver Marielle em todas as peças gráficas, em todos os cartazes, sendo vista... para nós, mulheres negras, isso tem um significado profundo. Lutamos historicamente por esse lugar de visibilidade", destacou.

"Fazer parte dessa delegação brasileira que a Flup trouxe é algo que me deixa muito feliz, porque é a primeira vez que eu participo desse festival", completou Ribeiro. Mesmo habituada ao público francês ? "Desde 2019 venho à França com a [editora] Paula Anacaona, divulgando meus livros" ?, a filósofa vê na presença em Saint-Malo um marco em sua trajetória: "Já são cinco títulos traduzidos para o francês, já ei por várias cidades, lutando, batalhando... Chegar aqui como uma das autoras principais é fruto de muito trabalho e dedicação. E essa estreia carrega um simbolismo ainda mais especial para mim", disse a escritora.

A imagem de Marielle Franco ocupa lugar de destaque no material gráfico do festival, assinado pelo artista Miles Hyman, renomado ilustrador norte-americano conhecido por seu estilo que mistura realismo e atmosfera cinematográfica, e reforça o tema central desta edição do evento: "Un autre Brésil" ("Um outro Brasil"). 

A homenagem à vereadora carioca assassinada no cartaz não é apenas simbólica, ela também foi tema de mesas de debate e reflexões ao longo da programação, reafirmando seu legado como inspiração para novas gerações de escritores e pensadores.

Um "gesto político e cultural"

Para Djamila Ribeiro, a importância da delegação não está apenas na representatividade individual, mas também no gesto político e cultural de apresentar um Brasil múltiplo à cena internacional. "É importante frisar o trabalho da Flup de ter trazido um Brasil diverso, escritoras e escritores negros, ficcionistas e não ficcionistas, para mostrar esse Brasil aqui na França. Um Brasil para além dos estereótipos. O Brasil da pessoa negra que escreve, das mulheres negras que produzem, que lutam, que resistem".

Marielle Franco, diz Djamila, é o fio condutor simbólico dessa presença. "Ela era uma mulher que foi para academia, uma mulher ativista, que lutava pelo coletivo. Marielle simboliza tudo isso. Ela representa essa delegação, esse trabalho que estamos fazendo aqui", salienta.

"Um grande manguezal chamado Brasil"

Durante o festival, os brasileiros participaram de diversas mesas-redondas com colegas estrangeiros, lançamentos de livros, exibições de filmes e apresentações musicais. Entre os destaques da programação estiveram os debates "Une Grande Mangrove Appelée Brésil" ("Um Grande Manguezal Chamada Brasil"), com Itamar Vieira Junior, Daniel Munduruku, Graciela Guarani e Bernardo Carvalho, e "Des Voix de Lutte" ("Vozes de Luta"), com Jeferson Tenório, Mateo Askaripour e Olivier Marboeuf.

O escritor Bernardo Carvalho destacou a complexidade da metáfora do manguezal, afirmando que as peças gráficas ? que trazem esse bioma em destaque como pano de fundo para a imagem de Marielle Franco ? carregam um duplo sentido.

Leia tambémFesta Literária das Periferias se internacionaliza "num esforço de sobrevivência", diz Julio Ludemir

"Há a vida que brota na efervescência do mangue, mas também, em contraposição, a imagem de Marielle, que nos remete imediatamente à morte. Penso que essa imagem traduz bem o Brasil ? um país suicidário, como pudemos ver no filme Meu Sangue é Vermelho, de Graciela Guarani, onde uma minoria está sempre tentando sabotar os esforços de uma coletividade", ressaltou.

Papel da literatura

Nascido no Rio de Janeiro e radicado em Porto Alegre, o escritor Jeferson Tenório tem uma obra reconhecida por abordar temas como racismo, violência policial e desigualdade social. Vencedor do Prêmio Jabuti de 2020 por seu livro "O avesso da pele", que já foi traduzido para várias línguas e vendeu cerca de 300 mil exemplares no Brasil. Jeferson Tenório compartilhou sua perspectiva sobre o papel da literatura à RFI.

"Eu creio que a literatura é esse grande encontro entre estranhos, ao mesmo tempo em que há linguagens diferentes, culturas diferentes, há também uma empatia, uma identificação e é uma forma também de um aprofundamento das questões raciais, decoloniais, da colonização, dos resquícios da colonização", destacou.

A arte e a literatura têm esse papel de aprofundamento e de tocar a subjetividades das pessoas que é capaz também de mudar as mentalidades, lembrou Tenório.

A presença brasileira no Étonnants Voyageurs integra a Temporada Brasil-França 2025, que celebra os 200 anos de relações diplomáticas entre os dois países. Como parte dessa parceria, uma delegação sa e francófona visitará o Brasil em novembro, ampliando o diálogo entre as literaturas do Sul global e da francofonia.

Notícias