SP não sabe quantos PMs são investigados por 'bicos' ilegais em segurança

A SSP-SP (Secretaria da Segurança Pública de São Paulo) não tem controle sobre o número de PMs autuados por trabalhar em "bicos" — serviços exercidos irregularmente no contraturno da atividade policial — mesmo quando agentes são envolvidos em crimes de repercussão durante as atividades ilegais.
O que aconteceu
Policiais são proibidos de trabalhar com segurança privada ou usar equipamento público durante a folga. A regra serve para evitar conflito de interesses. O cliente particular não pode ficar em primeiro plano, causando prejuízo para a função pública, ou usufruir de recursos e influência militar.
PM-SP não tem levantamento de quantos agentes foram investigados internamente por "bicos". Questionada pelo UOL, a Secretaria de Segurança Pública do estado disse que as ações istrativas que ocorrem dentro da Polícia Militar não são classificadas por delito, o que impede um o ao recorte.
Federação calcula cerca de 500 mil agentes públicos trabalhando de forma irregular no Brasil. A Fenavist, que representa as empresas de segurança e transporte de valores, inclui na estimativa policiais que exercem funções ou lideram equipes de segurança privada.
Na Polícia Civil, apenas um caso foi contabilizado pela SSP-SP. A apuração dessa denúncia, feita de forma anônima, ainda está em andamento. Um policial teria usado carro oficial da polícia durante "bico".
Apesar disso, a SSP-SP diz que coíbe a prática e pune irregularidades. A pasta informou que "a PM reforça que medidas de fiscalização e controle vêm sendo continuamente adotadas com o objetivo de coibir práticas irregulares, preservar a integridade da instituição e garantir a segurança da população".
O UOL apurou que a PM teve 279 ações internas nos últimos três anos. Os Processos istrativos Disciplinares englobam todas as irregularidades: insubordinação, negligência, conduta desonrosa, conflito de interesse.
Por que isso importa
Apesar de proibida, prática é amplamente conhecida e casos emblemáticos expam ainda mais o problema. A morte do delator do PCC no aeroporto de Guarulhos (SP) revelou que 14 PMs e 1 policial civil escoltavam Vinicius Gritzbach, sendo que um deles era dono de uma empresa de consultoria em segurança. Além disso, um policial de folga que trabalhava como segurança privado matou um homem na porta da balada Dois Dois, no centro de SP.
PMs são os preferidos da segurança privada por terem o a armas e recursos públicos. Dados da polícia são usados em dossiês privados, segundo a antropóloga Susana Durão no artigo "Nas sombras da proteção: a polícia brasileira na segurança privada", o que também é ilegal.
Além disso, existe o "bico fardado", que desfalca batalhão para dar segurança a lojas. O UOL teve o a um documento que relata a suposta obrigação de policiais permanecerem em uma base móvel próxima a lojas de varejo, em uma situação classificada como "falsa emergência". Os agentes se intercalavam, durante o expediente, por 20 horas no local, garantindo a guarda dos estabelecimentos mesmo sem comprovação de perigo iminente. Os agentes não tinham permissão para sair, e tinham dificuldade para se alimentar ou usar o banheiro durante a estada, segundo denúncia.
Governo de São Paulo permite "bico institucional": policiais trabalham legalmente para órgãos públicos fora do expediente. Nas Operações Delegadas, agentes fardados e amparados pela estrutura pública atuam no contraturno em convênio com as prefeituras. Em caso de grande repercussão, um PM nessa situação matou ambulante senegalês que tentava proteger mercadoria no Brás.
Pesquisa revelou que 18% dos ouvidos reconheciam serviço de vigilância privada feito por policiais de folga nos bairros. O levantamento, do FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública) entrevistou 2.508 pessoas em todas as regiões do Brasil no ano ado.
Entidade que representa empresas de segurança declarou guerra aos "bicos" policiais. A Fenavist ou a denunciar casos aos órgãos competentes por entender que a segurança privada "exige treinamento específico" e policiais na função "colocam a sociedade em risco". "Estamos denunciando com foto e endereço as ilegalidades", diz Frederico Camara, vice-presidente da entidade na região Sudeste.
Um vigilante armado e sem conhecimento da área privada pode causar uma grande tragédia, como vimos no caso do Carrefour do Rio Grande do Sul, de espancamento e morte.
Frederico Camara
Por que o "bico" acontece
Remuneração é insuficiente, diz federação. Soldados e cabos, os chamados praças, recebem entre R$ 3.000 e R$ 7.000, sem os privilégios das patentes mais altas. Eles "sofrem com a desvalorização profissional" e "teriam que ter o salário duplicado ou mais", disse ao UOL o presidente da Fenepe (Federação Nacional de Entidades de Praças Militares Estaduais do Brasil), o subtenente da PM-SC João Pawlick.
O policial vive estressado, porque não tem vida familiar, lazer, vida social. Bico institucional é um absurdo, pois leva o policial à exaustão.
João Pawlick
Muitos PMs estão endividados, mas só salário não resolve, diz coronel. Alan Fernandes, coronel, doutor em ciências policiais de segurança e conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ressalta que dificilmente o salário de um servidor vai se equiparar ao oferecido pela iniciativa privada.
Ainda que os salários aumentem, não sei se seria eficaz. Você tem bons salários sendo pagos na iniciativa privada, e a demanda é alta. Mas pagar bem ajuda. O policial federal, por exemplo, não faz bico, porque ganha muito bem.
Alan Fernandes
Superiores fazem vista grossa. O UOL apurou que é comum, dentro das corporações, que os superiores relativizem os "bicos" dos policiais, pois boa parte dos agentes também já teve que fazer isso em algum momento da carreira. Há um consenso de que as condições trabalhistas facilitam o cenário.
Em regra, há acordo tácito. Se o policial não der problema na atividade dele, não vai dar nada. Se você cometer um crime ou se chegar uma denúncia, você vai ser punido. O policial sabe disso. A punição é um a três dias de detenção, em que o policial tem que permanecer no quartel na folga dele. É um risco que ele assume.
Alan Fernandes